Não deixem seus filhos usar o TikTok, apelou um ex-diretor do Serviço Secreto de Inteligência a ministros e os altos funcionários do governo britânico.
O aplicativo de vídeos curtinhos e engraçados não só captura mensagens, e-mails e histórico de navegação de todos os seus usuários, na maioria crianças e adolescentes, mas de seus pais também. Basta dividir o mesmo wi-fi.
Por trás das dublagens e montagens inocentes, disse Nigel Inkster, existe um instrumento capaz de “abrir a porta” para o exército de hackers a serviço do regime chinês e obter acesso a informações sigilosas.
O fato de que o aviso tenha sido sido dado por Inkster é altamente relevante porque ele não tem os envolvimentos do governo americano e nem os interesses de gigantes como a Microsoft ou o Facebook, prejudicados pela concorrência to TikTok ou loucos para comprar o competidor e ganhar uma base mundial de 800 milhões de usuários.
Numa palestra feita no ano passado e só revelada agora, Mark Zuckerberg, o dono do Facebook , disse que o TikTok não tem compromisso com a liberdade de expressão.
Também é interessante que Zuckerberg tenha dito o óbvio: ele vive entre acusações de ser permissivo com a direita (de dar risada, considerando-se as simpatias políticas de seus checados) ou de censurar opiniões políticas fora do espectro da esquerda.
Atingida por uma medida provisória de Trump dando prazo de 45 dias ao braço americano do TikTok para ser vendido ou enfrentar várias restrições, a direção da empresa – a chinesa ByteDance – entrou com processo contra Trump.
A briga fica mais quente ainda porque antecede a eleição presidencial e Trump já foi prejudicado pela campanha supostamente espontânea de jovens usuários fãs – geralmente meninas – da música pop sul-coreana para sabotar seu último comício ao vivo, em junho.
A campanha negou veementemente que o estádio tenha ficado meio vazio por causa das reservas fake feitas pela turma do TikTok.
Brad Parscale, o geniozinho que comandou as redes sociais para insuflar a eleição de Trump em 2016, disse que as coisas não funcionavam assim e todas as reservas passavam por um processo de checagem.
Fatos da vida: o estádio em Tulsa estava meio vazio e, um mês depois, Parscale, fora da direção da campanha de Trump.
O TikTok pode ser considerado o primeiro instrumento de soft power a sair da China e conquistar o mundo – lembrando que soft power é tudo aquilo que tem um efeito cultural ou comportamental contagiante.
Sua graça é, justamente, ser tosco. Os vídeos de 15 segundos são apreciados porque não mostram cenas de ostentação e férias idílicas, como o Instagram, mas adolescentes fazendo bobagens engraçadas.
Seja ou não voluntário, o humor autodepreciativo faz sucesso entre a meninada: usuários na faixa dos 16 aos 24 anos são 41% do público (mas blogueiras de moda muitos anos acima dessa faixa também estão descobrindo a “nova” ferramenta).
O TikTok tem origem no aplicativo musical.ly, de dublagem de músicas, com sucesso internacional, e no Douyin, de chats voltados para o mercado chinês.
A ByteDance comprou o musical.ly em 2017 por um preço calculado em 1 bilhão de dólares. Hoje, a empresa vale 100 bilhões.
Seu dono, Zhang Yiming, de 36 anos – a mesma idade de Zuckergerg -, tem uma fortuna avaliada em 16,2 bilhões de dólares.
Ironicamente, no início da carreira, Zhang chegou a trabalhar como engenheiro de software para a Microsoft – exatamente a maior interessada em comprar o braço americano da operação.
Zhang faz tudo para acalmar as suspeitas de que os dados dos usuários possam ser acessados por instituições ligadas ao regime chinês. Suspeitas agravadas pelo fato de que ele se desculpou por um site que passava da linha das piadas aceitáveis pelo e prometeu “aprofundar ainda mais cooperação” com o Partido Comunista da China, a autoridade suprema.
Colocou os servidores em Cingapura e nos Estados Unidos e contratou um nomão americano, Kevin Mayer, ex-Disney, como CEO.
Tudo, evidentemente, inútil: qualquer empresa chinesa tem que fazer o que o governo manda, especialmente em casos envolvendo “segurança nacional”.
A sede da ByteDance é em Pequim. A empresa domina as redes sociais na China, mas é o que faz fora dela que interessa.
O TikTok tem apenas 1 500 funcionários em território americano – uma miséria diante dos 100 milhões de usuários nos Estados Unidos.
O historiador britânico Niall Ferguson fez uma avaliação drástica do aplicativo no Bloomberg:
“O TikTok não é apenas a vingança da China pelo século de humilhação entre a Guerra do Ópio e a revolução de Mao. Ele é o próprio ópio – um fentanil digital para deixar nossos filhos satisfeitos com o império chinês que está chegando”.
Ferguson ressalta que o TikTok não é uma rede social como o Facebook, mas sim um instrumento que usa inteligência artificial para coletar todos os dados do usuário e, assim, personalizar o conteúdo.
O TikTok já foi multado nos Estados Unidos – míseros 5,7 milhões de dólares – por coletar dados pessoais de crianças abaixo de 13 anos, a idade do “consentimento digital”. Também já houve casos de pedófilos usando as dublagens engraçadas para abordar meninas.
Mas o que interessa é como o aplicativo se tornou um instrumento da disputa geopolítica e seu uso possível como fonte de um oceano de informações sobre cada usuário – e seus pais também, segundo o ex-diretor do serviço secreto inglês.
Com base no histórico de buscas, de viagens, de amigos, de compras e de tudo o que se faz na esfera digital, os algoritmos podem não só prognosticar como antecipar eventuais comportamentos políticos. E podem ser vendidos pela China a países que quer atrair para sua esfera – todos sem tradição democrática sistêmica.
É uma questão, como se vê, muito maior do que a briga atual entre Trump e um bando de adolescentes viciadas no K Pop coreano.
Mas esta é a etapa que está sendo disputada no momento e pode nos dar uma ideia do que virá pela frente.
Não é só Mark Zuckerberg que tem muito a perder com o avanço dos TikTokers transformados em peões do maior jogo de xadrez planetário do momento.