Crônicas de uma pandemia: o resgate do “fofinho”

Cada vez mais, percebo que a emoção por trás da reclusão forçada pela Covid-19 pode se apresentar de duas maneiras. Para muitos, críticas e desapontamento são a forma prevalente. Para outros, buscar por condições que amenizem o fardo desse “novo normal” tornou-se uma experiência interessante.

Na “Síndrome de Poliana”, existe uma onda de positividade, vinda do subconsciente, que leva as pessoas a focarem no otimismo, contrapondo-se ao estado negativista do plano consciente. Mas, não falo disso; falo em observar situações simples do cotidiano, na imensa maioria das vezes, inusitadas e boas, que, no frenesi do mundo moderno, não temos tempo para exaltar. Por isso, vou dar um exemplo do que aconteceu comigo recentemente.

Aos 6 anos de idade, herdei de minha mãe um travesseiro por ela adquirido em 1959 – sim, 1-9-5-9! –, no período de sua quarentena, ou, naquele tempo, “resguardo”, do nascimento de minha irmã, seu primeiro filho. Ao chegar a mim, nos seus áureos 20 anos de um jovem travesseiro adulto, o tal objeto doméstico estava, ainda, com todo o seu vigor, desempenhando bem o seu propósito na Terra.

Originalmente, o tal travesseiro era revestido de um cetim de listras marrom e bege intercaladas, recheado de pena, que, em conjunto, conferiam-lhe um toque prazeroso, misto da combinação tátil de um geladinho liso e uma maciez rechonchuda. Imediatamente, dei-lhe o nome de “Fofinho”. Fofinho tornou-se meu amigo noturno inseparável, pasmem!, até meus 30 anos de idade, quando sofreu a última de suas inúmeras repaginadas: mais uma troca do revestimento e desembaraço das plumas que formavam nódulos em seu interior. Não sei por que, mas, depois daquele “extreme make-over”, Fofinho perdeu a graça, foi aposentado e adquiriu um canto escuro no guarda-roupa, embaixo dos cobertores. Uma década de ostracismo foi percorrida pelo famigerado travesseiro até que, há 6 anos, quando me mudei para os Estados Unidos, nunca mais o vi. De fato, esqueci completamente dele; acho que, finalmente, livrei-me de meu objeto de transição de uma tal primeira infância tardia e preguiçosa.

Há mais ou menos 15 dias, em uma das arrumações de guarda-roupas que só o ócio de uma pandemia nos dá, eis que Fofinho surge vigoroso e politicamente incorreto, já que, feito de pena, é o que os dias atuais o rotulam. No entanto, Fofinho estava, ainda, bem resolvido com sua essência de travesseiro, surpreendentemente, útil ao seu propósito e, melhor de tudo, fofinho! Isso, sim, é exemplo de um preparo físico consistente. Imediatamente, em uma operação-resgate digna da hollywood dos travesseiros, Fofinho foi chacoalhado várias vezes e sufocado em 2 ciclos contínuos e ininterruptos da máquina de secar, eliminando qualquer ácaro highlander. Contudo, uma pergunta não se calava: como o Fofinho poderia ser um sexagenário enxuto, sustentável e útil, promovido ao status moderno de objeto politicamente correto? Bem, aí entra a tal simplicidade do cotidiano…

Na minha casa, todas as noites, há um ritual conjunto com os meus 3 filhos. Após 6 meses para fazer Asher, de 7 anos, a ter seu próprio quarto, decidimos voltar os 3 irmãos a dormirem juntos. Cada noite, eu deito com um deles, seguro na mão do dono da cama da vez e nós 4 rezamos em voz alta. Agradecemos ao dia que tivemos e, principalmente, ao que Deus nos deu: vida, brinquedos, pais, Milo (nosso whippet), amigos, escola, professores, parentes e avós no Brasil, terminando com nossos entes que já se foram: vovó Leo, vovô Wilson e Albert, nosso whippet que, em 2018, segundo meus filhos, “crossed the bridge and is now a puppy star”.

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No tal dia do re-encontro e “reinclusão de Fofinho à sociedade”, era a noite de rezar com meu filho do meio, Spencer. Levei o Fofinho comigo e, em voz alta, contei a história do porquê daquele travesseiro ser tão importante para mim. Os 3 meninos ouviram-me em silêncio, tanto que achei que tinham pegado no sono. Do meio da escuridão, emerge a voz do Spencer que dá a ideia: “The Fofinho’s Night”! Isso mesmo, Fofinho foi convidado e passou a ser parte do nosso rito noturno, determinando o rodízio de qual cama eu irei rezar na referida noite, desempenhando o nobre papel de sinalizador de nossa tradição familiar.

A partir daí, temos, assim por dizer, uma “baladinha” diária e Fofinho entra na bagunça como o anfitrião. O irmão, que não é o da noite da vez, rouba o Fofinho, colocando-o debaixo da coberta ou do seu travesseiro. O filho da vez, indignado com a situação, esbraveja por seus direitos. O dona da cama da noite seguinte, ah, esse, deve estar aprontando alguma outra coisa…. Em terra de pai de 3 meninos, o pai que bem usa seus 2 olhos, como se fossem 6, é rei!

Atualmente, já incorporado à nossa rotina, Fofinho serve à uma terceira geração da mesma família. Para Asher, fofinho é o travesseiro da “vovó Dita”, abusando de seu lindo sotaque sulista americano. Para Spencer, o Fofinho será o travesseiro que ele rezará com os seus filhos quando ele casar (detalhe, ele apenas tem 5 anos!). Para KJ, ah, o “bebezinho” KJ, de 4 anos, depois de o convencer que todas as noites não são a sua noite com o Fofinho, eu tenho que, afirmativamente, responder à sua pergunta diária: “Could you buy one only for me, pleaseeeeeee?”. Como responder “não”, né?

Enfim, “polianismo” à parte, Fofinho foi mais um presente que a quarentena da Covid-19 me deu.

Adilson CostaRicardo Matsukawa/VEJA.com

 

 

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Fernanda de Souza

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