Hezbollah na forca e outras surpresas da explosão dos libaneses

Um país tão traumatizado quanto o Líbano está dando lições a todos os desgovernados do planeta. A principal: existe um limite para o que o povo pode aguentar.

No Líbano, o limite foi ultrapassado quando o depósito de nitrato de amônio no porto de Beirute, por motivos naturais ou provocados, causou um nível de destruição diante do qual empalidecem os piores terremotos e outras tragédias da história recente.

Fatiado entre as diferentes político-religiosas para pagar o “pedágio” compatível com um lugar por onde passa 80% do PIB do país, o porto devastado virou o símbolo das desgraças do Líbano e catalisador de uma nova onda de protestos.

“Meu governo fez isso”, diz uma pichação enorme na entrada do porto.

Na edição desta semana: como a disputa entre Estados Unidos e China pode ser vantajosa para o Brasil. E mais: ‘Estou vivendo o inferno’, diz Marcelo OdebrechtVEJA/VEJA

Mais impressionantes ainda foram os protestos na Praça dos Mártires e outros pontos, inclusive o Ministério das Relações Exteriores, tomado por um grupo que tinha no comando um general da reserva, Sami Rammah.

Entre os destroços provocados pela explosão no porto, Rammah declarou: “Aqui passa a ser a sede da revolução”.

Nem mesmo no Líbano generais costumam abraçar protestos populares e falar em revolução.

E mesmo no Líbano seria impossível imaginar, há menos de uma semana, que um boneco representando o todo-poderoso Hassan Nasrallah, o líder do Hezbollah, hoje a força política e militar dominante no país, seria enforcado simbolicamente no principal praça de Beirute.

Não estava sozinho. O presidente Michel Aoun fez companhia ao falastrão. Nasrallah sentiu o baque quando o porto foi pelos ares e desmentiu as suspeitas imediatamente provocadas por um material tão usado em atentados terroristas.

“Não temos nada lá. Nem mísseis, nem munição, nem armas, nem nitrato de amônio, nem um fuzil”, proclamou.

Obviamente, muita gente concluiu exatamente o oposto.

As simpatias que o Partido de Deus conquistou fora dos limites da população xiita já viraram fumaça há muito tempo. 

Como detentor do poder de fazer e derrubar governos, Nasrallah tem uma parte enorme da responsabilidade pela situação desastrosa do país mesmo antes da explosão no porto.

O Líbano está quebrado em mais de um sentido. A moeda virou pó, não tem emprego, água e luz são intermitentes e a dívida externa de 100 bilhões de dólares, já caloteada, é grotesca para um país de cinco milhões de habitantes, mais dois milhões de refugiados da guerra na Síria, outra encrenca gigantesca na qual o Hezbollah teve mais do que uma participação entusiasmada.

A sobrevivência do regime de Bashar al-Assad foi um triunfo para a aliança xiita, do Irã ao Líbano. Ironicamente, coincide com crises econômicas nos dois países. 

No caso do Irã, o regime de sanções dos Estados Unidos, somado aos gastos militares elevados durante a guerra na Síria, torna a crise mais aguda. 

Com mais capacidade de estrangular protestos, o Irã, mesmo assim, viu explosões quase inacreditáveis, com gritos de “morte ao traidor” – justamente o supremo aitatolá Khamenei – e até de “Morte à Palestina”, uma inversão estarrecedora de tudo o que prega o regime.

No Líbano, os barbudinhos do Hezbollah fizeram intervenções pontuais no início dos protestos, espancando grupos isolados de manifestantes quando começaram a colocar Nasrallah na mesma lista de políticos com um nível de depravação espantoso até por quem está acostumado aos horrores do gênero.

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O que vai acontecer agora, num momento de profunda crise – e também catarse -, em que Nasrallah, endeusado por seus seguidores, é “enforcado” em praça pública?

Os meandros da divisão do poder no Líbano – e do que é preciso fazer para manter cada fatia – têm a capacidade intrínseca de despedaçar reputações.

Michael Aoun, por exemplo, parecia um homem honrado quando se insurgiu em 1989 contra a escandalosa interferência da Síria, que considera o Líbano seu “puxadinho”.

Passou mais de um ano no bunker debaixo do palácio presidencial, na linha de fogo direta dos canhões sírios. 

Por um breve período, conseguiu unificar os cristãos maronitas (sempre se matando), além do apoio de sunitas e até xiitas – nem todos os libaneses dessa confissão seguem o Hezbollah e o Amal.

Foi fragorosamente derrotado pelos sírios. Voltou do exílio já disposto a se entender com o Hezbollah.

Depois da catástrofe no porto, começou a insinuar ingerência estrangeira, sob a forma de “um míssil ou outro ataque”. Talvez ache que vá escapar da responsabilização com este tipo de sordidez.

Quando a situação fica feia, o clássico dos líderes libaneses é apelar às bases divididas de acordo com as divisões e subdivisões religiosa.

Pelo acordo internacional que encerrou as várias etapas da guerra civil libanesa, houve uma repartilha do poder entre as várias facções religiosas para acomodar todos os interesses.

Cristãos e muçulmanos têm direito a 64 lugares no Parlamento cada um.  

Parece simples, mas considere-se que, em ordem decrescente de representação, o genérico “cristãos” inclui o seguinte: católicos maronitas, seguidores da Igreja Ortodoxa Oriental, católicos melquitas, armênios ortodoxos, armênios católicos, protestantes e outros.

Os muçulmanos são mais simples: sunitas, xiitas, alauítas e drusos.

A explosão de protestos já havia provocado a renúncia de Saad Hariri como primeiro-ministro – cargo que ocupava a maior parte do tempo remotamente, de Paris.

Hassan Diab, um professor de engenharia da computação que deveria ser um substituto neutro, como se isso fosse possível no Líbano, disse depois da explosão que a crise nacional demanda novas eleições, como um novo pacto social. Dispôs-se a convocá-las no prazo de dois meses.

O Líbano aguenta mais dois meses?

“Preparem a forca porque a raiva não acaba em um dia”, disseram manifestantes que voltaram às ruas ontem.

Dois ministros e quatro deputados, dos quais três ligados ao clã Gemayel, já renunciaram em protesto contra a explosão no porto.

A raiva continua explodindo.

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Fernanda de Souza

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