Pietra de Pinho, 22 anos, empresária –
DA ARTE DO FLERTE
“Fazer sexo com sentimentos é infinitamente melhor e, mesmo em um relacionamento, não precisa ser algo tão central assim. Para mim isso não é um dogma, não é tabu. E, na verdade, acho o flerte e a conversa muito mais gostosos. Sei que estou no auge da minha vida sexual, mas sigo achando o sexo superestimado.”
Vai soar como oximoro, uma impossibilidade, uma maluquice para tempos exageradamente modernos, mas é melhor ir direto ao ponto: os adolescentes e os jovens adultos, homens e mulheres, andam desinteressados do sexo. Para quê?, é o que parecem perguntar, alheios à sinfonia hormonal, de desejos à flor da pele, de tão tenra idade. Uma coleção de estudos internacionais atesta esse movimento de corpo. O trabalho mais recente, publicado em julho deste ano, feito por especialistas do Instituto Karolinska, em Estocolmo, na Suécia, em parceria com instituições como o Departamento de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis, revelou que quase 31% de homens dos 18 aos 24 anos não fizeram sexo ao longo dos últimos doze meses. Entre as mulheres, 19% disseram “não, não quero”. É mudança histórica. Em 2002, menos de 20% do universo masculino dessa faixa etária dizia se abster das relações sexuais. As mulheres negavam deitar-se em 15% dos casos. Esperava-se, dada as sucessivas conquistas comportamentais, aos brados de igualdade e direitos, especialmente entre elas, que a libido se multiplicasse, mas não foi o que aconteceu.
É o que os especialistas chamam de “apagão sexual”. Não se trata de gente defendendo castidade ou sem vontade passando por momentos ruins na vida. É, a rigor, uma postura que dá as mãos aos novos humores, ao cotidiano reinventado, pendurado nas redes sociais, nos smartphones, na vida a um toque — a um toque do dedo no aparelho eletrônico. “Vejo como certa imaturidade quem põe o sexo como um dos assuntos mais importantes da vida”, diz Millene Müzel, 29 anos, estudante e estagiária de engenharia de materiais, numa frase cuja simplicidade resume a toada de toda uma geração (leia outros depoimentos ao longo desta reportagem). Mas, enfim, se algo se apagou, o que foi que acendeu? A facilidade de comunicação por meio da internet, que exclui, em muitas situações, o contato físico.
O prazer, hoje, pode ser o de ver azuladas as duas marquinhas do WhatsApp, a expansão meteórica das curtidas no Instagram ou algo um pouquinho mais apimentado, mas não muito. Metade dos jovens entre 18 e 22 anos já recebeu nudes como forma de conquista, mostra pesquisa conduzida pela Match Corporate, empresa que controla gigantes do segmento de relacionamentos amorosos, como o Tinder e o OkCupid. Um nude para cá, outro para lá, e basta. “O sexo virtual permite não só a conexão rápida, como também a desconexão sem grandes encargos e desgastes”, diz o antropólogo Michel Alcoforado, sócio do instituto de pesquisa Consumoteca, de São Paulo. Além disso, o alto consumo de conteúdo pornográfico, que chega às telas dos mais jovens cada vez mais cedo, também é contraproducente.
O prazer solitário, imediato, fácil, facílimo, acaba por prejudicar interações fundamentadas do encontro a dois. “Chegamos a um ponto extremo, em que jovens saudáveis não conseguem manter um relacionamento por ser incapazes de se estimular ao lado de outra pessoa”, diz Carmita Abdo, psiquiatra, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex).
O SEGREDO DA TRANQUILIDADE
“Vejo como certa imaturidade quem acha o sexo um dos assuntos mais importantes da vida. Percebi que respeitar meus desejos e minhas vontades é o maior exercício de libertação que existe. Converso muito sobre isso com meu marido, temos uma relação de equilíbrio e, acima de tudo, respeitamos a vontade do outro.”
Seria superficial, embora decisivo, atribuir a desaceleração das atividades sexuais apenas aos contratempos de ordem digital. Há um outro interessante aspecto das atitudes da nova geração: a demora para engrenar nas atividades que remetam à vida adulta, como a saída da casa dos pais, o casamento e a conquista de certa independência financeira. Se no passado a juventude era naturalmente “empurrada” para a rua, hoje não é mais. Com o prazo para a maturidade estendido, a vida sexual também fica em segundo plano, por igualmente representar uma emancipação da realidade adolescente.
Sem pressa, tudo muda. “Os jovens estão mais calmos para encontrar seus desejos e pô-los no lugar, sem ter que alardear nada”, afirma a professora Stella Christina Schrijnemaekers, antropóloga da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Essa calma, diga-se, carrega postura louvável. O batido e constrangedor hábito masculino de espalhar feitos sexuais, inevitavelmente falsos, virou tolice. Diz a psicóloga Raquel Varaschin, presidente do conselho da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana (Sbrash): “O sexo não perdeu o protagonismo, mas está concorrendo com outros assuntos também relevantes como o vestibular e o mercado de trabalho extremamente competitivo”.
O BEM DA ABSTINÊNCIA
“Fiquei dez meses sem ter contato íntimo com ninguém e isso foi realmente transformador. Tive mais prazer fazendo esportes, trabalho voluntário e me dedicando à minha carreira na música. Não foi um sacrifício, pelo contrário, eu me sentia muito mais disposto.”
Desde que o mundo é mundo, o sexo conduz o comportamento da humanidade e por questões que vão muito além do caráter biológico. Na história moderna, ele representa uma das mais potentes ferramentas revolucionárias. Homens e mulheres que viveram os anos 1960 e 1970 viram florescer uma reviravolta feminina que mudou para sempre a concepção de desejo e libertação de corpos. Brotaram nessas duas décadas — para nunca mais deixar de existir — a pílula anticoncepcional e o divórcio. Nos anos 1980 e 1990 a epidemia causada pelo vírus HIV reergueu a patrulha moral sobre o que os corpos fazem na intimidade. E hoje, pela primeira vez, a atividade sexual talvez esteja perdendo seu caráter contestador. “Há uma certa exaustão sexual deflagrada pela carga histórica” diz a antropóloga e escritora Mirian Goldenberg. É como se homens e mulheres já não quisessem carregar nos ombros tanta responsabilidade. O direito de escolha, tão defendido pelas gerações anteriores, se manifesta agora em um novo tipo de liberdade, que parece cair bem aos novos tempos: o direito de não fazer. Ou fazer só de vez em quando, entre uma curtida e outra no Instagram, um piiim no WhatsApp.
Publicado em VEJA de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704