Em meio a uma crise de alcance global, surgem oportunidades tanto políticas quanto para mudar definitivamente alguns dos mecanismos socialmente mais perversos da organização econômica mundial. Também surgem oportunidades para algumas espertezas.
Jair Bolsonaro, por exemplo, encontrou uma ferramenta pela qual pretende comprar sua reeleição e faz da ideia de seguir distribuindo dinheiro aos brasileiros menos favorecidos o principal objetivo de seu governo, sem vincular o programa a objetivos sociais sólidos, como progressos educacionais ou qualificação de mão de obra.
Sua declaração de que não quer mais ouvir falar em Renda Brasil era, como se imaginava, uma cédula de três reais, como demonstra a recente atividade de parlamentares e lideranças governistas para incluir o sucessor do auxílio emergencial na PEC do Pacto Federativo (leia neste link).
É nesse tipo de esquina que a promoção social faz a curva para se tornar mero assistencialismo com retorno político, mas, assim como os necessitados não se preocupam com o objetivo da distribuição de benefícios, só importa ao presidente as consequências do programa na sua popularidade.
Há, porém, em todo o mundo, muita gente que vem enxergando na pandemia uma oportunidade verdadeira para a adoção de facilidades para a vida prática ou, com mais relevância ainda, redefinir prioridades sociais e disseminar novas medidas que tornem mais acessíveis e baratas ações de combate à desigualdade nas área de saúde, educação e geração de renda, entre outras.
Essas são pessoas que procuram fazer limonadas com uma das maiores safras de pepinos já colhida no planeta. Aqui vão alguns exemplos.
O jornalista Jaison Fefner, do site Entrepeneur, fez um podcast sobre boas coisas resultantes da pandemia e listou, no meio de muitas mudanças, soluções novas que devem continuar sendo praticadas mesmo depois que as rotinas de trabalho, comércio e entretenimento forem retomadas. Ele cita, como destaques óbvios, a massificação do trabalho remoto, o teleatendimento na medicina e a quantidade de serviços a domicílio.
Ainda que pareçam apenas trazer mais conforto à vida diária, essas alterações terão, a médio e longo prazo, impacto imenso sobre a organização das cidades, a eficiência e o barateamento dos serviços médicos e os custos de novos empreendimentos. Novos imóveis devem prever espaços para teletrabalho; profissionais de medicina podem salvar vidas mesmo a distância; e restaurantes ou lavanderias podem existir sem salões de refeição ou balcão para atender clientes.
Numa avaliação de alcance ainda mais importante, do ponto de vista social, Graça Machel, ativista africana de direitos humanos, enxerga na pandemia a oportunidade de repensar todo o sistema educacional e de criação de oportunidades para geração de renda entre os mais pobres, notadamente no continente onde vive.
Ela entende que, num momento em que os líderes mundiais com maiores responsabilidades têm a chance de pensar em mudanças na organização de seus países ou corporações, é possível sensibilizá-los para a emergência da situação africana. Quando se discute, aqui e em outros países pobres a dificuldade de acesso à internet, deve-se recordar que em Moçambique, por exemplo, 70% da população não tem nem mesmo energia elétrica. Graça Machel não está fazendo proselitismo: protocolou carta endereçada a essas pessoas e pretende cobrar e divulgar as respostas.
Recordando que os países ricos vinham, antes da pandemia, debatendo-se gravemente com o problema de receber migrantes exilados pela política, pela fome e pelos conflitos regionais, não é absurdo pensar que esse tipo de iniciativa tenha algum êxito no mundo que emergirá do cenário atual.
Num outro ramo de oportunidades, a pandemia criou a necessidade de trocar com países vizinhos informações que possam contribuir para a gestão mais eficiente de recursos de saúde e de estratégias para o controle do coronavírus. A União Europeia trata a Covid-19 como um problema continental, enquanto, em termos de Brasil, mesmo as ações regionais, na Unasul, restringiram-se praticamente apenas a questões econômicas. Mas outros países sul-americanos vêm colaborando entre si.
Vários presidentes latino-americanos manifestaram-se há poucos dias sobre a necessidade de a ONU trabalhar por uma vacina livre de patentes, que permita a imunização ao menor custo possível nos países da região. Como se viu no pronunciamento de Bolsonaro na assembleia geral da entidade, essa não parece ser uma prioridade para o Brasil, mesmo com o país rumando para se tornar dono do pior cenário mundial da Covid-19. Pelo contrário. O governo hesitou bastante até aderir à aliança mundial por vacinas.
Não é verdade, no entanto, que o Brasil não esteja ligado em algumas oportunidades criadas pela situação sanitária. No começo de setembro, representante da Agência Nacional do Petróleo participou, por exemplo, um evento virtual destinado a discutir especificamente o que o país pode lucrar e que desafios deve vencer no período pós-pandemia, com uma eventual nova configuração na comercialização mundial de óleo e gás.
Ou seja, se for possível tirar proveito econômico da tragédia, além do ganho político, não se perderá a oportunidade.