Expectativas perenes já não combinam com o frenético mundo novo que estamos vivendo, em qualquer plano. Especialmente se o protagonismo é exercido pelo poder público. São necessárias alternativas ou aceitar os golpes e modificar os hábitos.
As mudanças que nos estão sendo impostas margeiam a ameaça biológica em curso, porém, não são dela resultantes. Há algum tempo procuramos postos de trabalho para inúmeras atividades substituídas por softwares, enquanto aderimos ao consumo online para rapidamente dispensar a necessidade de vendedores e lojas físicas.
Na timidez de nossa retomada, procuramos instintivamente aquilo a que estamos habituados, adotando atitudes e comportamentos que buscam o status pré-pandêmico, para nos acomodar naquilo que os psicanalistas classificam como zona de conforto. Estamos ansiosos por novas agendas, mas de antigos compromissos, novas realizações, porém, de velhos projetos. E restamos tais quais predadores, à espreita da distração da presa para então lhe arrebatar, em um jogo de paciência que nos impomos à espera de ser o que éramos.
Especial atenção tem sido dada à queda de movimentação no comércio e serviços de algumas cidades com o cancelamento de megaeventos, a malquista estimativa para São Paulo alcança os 3,4 bilhões quando se agregam o Carnaval, Fórmula 1, Parada do Orgulho LGBT e Réveillon na Paulista. Outros centros no Brasil e no mundo assumem preocupações proporcionais às suas projeções.
Existe uma gigantesca interrogação mundial acerca da sobrevida de médios e grandes eventos nas apresentações convencionais, especialmente diante de tantas possibilidades para a presença e participação remotas. Nos últimos anos os congressos médicos, os quais reúnem dezenas de milhares de profissionais, são muito mais sustentados pelos interesses turísticos de seus participantes, que pelo conteúdo, este, facilmente entregue por inúmeras plataformas, talvez ainda mais assimilável diante da tela do computador.
Se por um lado a presença de público em palcos esportivos implica em conduções emotivas distintas entre os competidores, está claro que os embates em todas as modalidades esportivas podem ocorrer sem espectadores “in loco”. Se as generosas descargas adrenérgicas viciantes são psicologicamente melhor aproveitadas junto aos pares de mesma bandeira, nos organizaremos defronte as telas.
Fiéis por todo o mundo peregrinam para seus templos, mas não são poucas as cerimônias religiosas de vultoso porte transmitidas para milhares ou milhões sem que haja questionamento de seus credos. Pequenas ou monumentais exibições musicais, de ampla diversidade, podem ser adquiridas a custo variável e as vemos de nossas poltronas. O carnaval, ao menos em sua emblemática marca internacional, poderia acontecer na ausência de conteúdo humano nas arquibancadas e seus adeptos estariam atentos às evoluções tão bem apresentadas pelas redes de televisão.
O que os parágrafos precedentes explicam é que os médios e grandes eventos não estão impedidos na concepção de suas execuções e podem nos ser entregues de muitas maneiras. O centro nevrálgico da questão é a monetização destes processos, ou mais precisamente, como distribuir recursos a todos os envolvidos, nas proporções pré-existentes.
Ainda que anestesiemos as dores das mudanças com o fascínio das facilidades adquiridas, nada é novo, pois, não de hoje prestigiosos veículos de imprensa capitulam inapelavelmente pelo mundo afora em função de um fluxo “internáutico” pseudo gratuito, sem filtro ou regras, que democratiza a informação ao tempo que permite a desqualificação do seu conteúdo.
Imagino a esperada imunização nos primeiros meses do ano e quando o Carnaval chegar estaremos debutando plenas concentrações dos anticorpos que nos blindarão da malfadada virose. Se meu otimismo é exagerado e esta previsão só encontrar lugar nos meses posteriores, ainda assim os festejos adiados serão possíveis no que preveem nossos comandantes.
Mas, no planeta que encaminha sua essência para um imenso modelo virtual de funcionamento é demasiadamente simplista esperar uma vacina na esperança de corrigirmos nossas rotas, aqui ou alhures. O que faremos é retornar para os mesmos quereres, fadados à dissolução em curto tempo, contexto apenas acelerado pela condição pandêmica.
Transitamos entre a Idade Média e a Moderna em um movimento que abrandava a ingerência dogmática e valorava em proporção crescente a racionalidade e a ciência, criando as bases que alicerçariam o mundo contemporâneo. Agora, em nítida transição para novo período histórico, navegamos (literalmente) por um mar de incalculáveis conhecimentos, catalisados por exuberantes avanços tecnológicos e ainda assim, estamos à deriva.
Enquanto o mundo procura o controle cibernético, por aqui começaríamos bem com reformas política e fiscal, revisão do lastro educacional em todos os seus níveis e estímulo e proteção à produção intelectual. Somente novos caminhos nos entregarão novas portas, e estas, quem sabe, nos apresentem um país que caibam todos.