Fala, Wilson

Ninguém vive apartado da sociedade, dos amigos, dos parentes por um tempo que parece não ter fim. O limite é variável, depende de cada pessoa, de seu temperamento, das circunstâncias, do planejamento. No início da pandemia, houve quem projetasse cem dias de reclusão, achando talvez que estivesse arredondando para mais o período de confinamento. Hoje já estamos em cinco meses — e contando. É natural que assim seja. O ser humano é gregário por natureza. Lembro-me de Tom Hanks, em Náufrago, que, para amenizar os efeitos do isolamento numa ilha deserta do Pacífico, durante quatro anos conversou com uma bola de vôlei, a quem chamava de Wilson. Por fim, entre a perspectiva de continuar sobrevivendo sozinho à base de monólogos intermináveis e a possibilidade remota de voltar à civilização a bordo de uma jangada improvisada, ele não teve dúvida em arriscar tudo. Havia chegado ao seu limite.

Qual é o seu limite? Provavelmente depende de uma série de fatores. Limites são elásticos, vão sendo reconfigurados a partir da realidade que se impõe. O que ontem era inaceitável hoje pode ser perfeitamente possível. Outro dia recebi pelo WhastApp uma mensagem que, lida em meio às incertezas atuais, provoca um riso nervoso: “O primeiro ano da quarentena sempre é o mais difícil”. Tenho reparado que o stress provocado pelo novo coronavírus está dividindo os brasileiros em dois estados de espírito: o perseverante e o ansioso. Não os vejo como categorias estanques. Elas estão presentes em cada um de nós. Convivemos, imagino, com um pouco de um e do outro. Um dia acordamos determinados a nos manter fiéis à rotina autoimposta, mas à tarde fraquejamos e ficamos afoitos para dar uma voltinha no quarteirão.

“O meio-termo é razoável: sair às ruas, mas sem se expor. Ficar em casa, mas sem enlouquecer”

O perseverante e o ansioso que nos habitam são o anjo e o diabo da nossa consciência, dizendo o que devemos fazer ou o que estamos perdendo por agir assim. “Continue se preservando”, diz o primeiro. “Que nada! A vida não espera”, diz o segundo. Um apela à saúde física, o outro à sanidade mental. Percebo que o diabinho está sendo cada vez mais ouvido. Entre os que se mantêm no isolamento, há quem se sinta um idiota ao ver amigos levando uma vida normal.

A humanidade parece ter desenvolvido uma capacidade de subestimar o perigo. No começo da quarentena, li que o isolamento exigido por uma epidemia costuma acabar antes de a cura ser encontrada. Foi assim no fim da I Guerra Mundial, em 1918: após o anúncio do cessar-fogo, as pessoas saíram às ruas para comemorar, esquecendo-se que a gripe espanhola ainda não havia sido debelada.

Diante de tantas dúvidas sobre o que fazer, o meio-termo parece ser uma alternativa razoável. Sair às ruas, mas sem se expor. Ficar em casa, mas sem enlouquecer. Num cartum que vi recentemente um personagem comenta: “Fico me perguntando como seria minha vida se eu tivesse feito outras escolhas”. E o outro, com cara de tédio, responde: “Você estaria se perguntando como seria a sua vida se tivesse feito outras escolhas”. O importante, acredito, é que essas escolhas, quaisquer que possam ser, sejam conscientes.

O que você acha, Wilson?

Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701

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Fernanda de Souza

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